Clarêncio vs Craig of the Creek — Realismo Real vs Realismo Fantástico
Inevitável comparar Clarêncio com Craig of the Creek. Os dois têm essa estética simples, um questionamento sobre a infância e inocência. Priorizam o realismo ao mostrar os dilemas do trio de protagonistas mirins, que não passam de brincadeiras e bagunças.
O problema é que, na prática, são séries com propostas quase inversas. Eu prefiro Clarêncio. Como uma típica série do início da década de 10, ele tinha mais a dizer e trouxe propostas um tanto mais relevantes.
No início, ambas as séries parece que vão abordar o que é a “verdadeira infância”, “a magia de ser criança”, “Como crianças possuem um papel fundamental em fazer brotar a criatividade e esperança no mundo”. Mas Clarêncio nunca chega lá.
Ele sempre volta a ser só sobre crianças vivendo suas vidas. Ele é realmente uma série “slice of life”, o que era praticamente impensável no meio de animação até então. Animação tinha que ter fantasia, magia, algo “a mais” para apimentar a vida.
E Clarêncio corajosamente não vai lá. Ele fica nesse lugar de “o que crianças realmente fazem? Que tipos de dilemas realmente aflingem as crianças? Talvez alguém colocou na cabeça deles que meninas e meninos tem que ter uma relação de romance e eles não sabem como lidar com um conceito tão sem sentido. Talvez a professora não esteja conseguindo ensina-los porque ela não faz ideia do que esteja fazendo ali, está sendo mal paga e vive em um quarto de motel (algo comum nos EUA). Talvez as crianças tenham problemas familiares que não acham lugar para discutir. Talvez suas brincadeiras e sonhos sejam mesmo só coisas que vão deixa-los sujos e perdidos, mas ainda vai valer a pena só porque adrenalina faz bem ao corpo humano e não precisamos de mais nada além do que está aqui”.
É um choque de realidade tão brutal e sem remorsos que nos obriga a ficar lúcidos para assistir. É como quem diz “animação também pode ser sincera, sabia?”. No início, até existe uma oscilação entre o fantástico e o real, quando as coisas se resolvem num passe de mágica.
Mas depois, a falta de conclusões cheias de sentido significa que, as vezes, não entendemos como tudo se resolve. A vida só acontece. E mesmo assim, não falta nada para valer a pena ser transformada em história.
Enquanto isso, Craig of the Creek tem o tipico tom das animações atuais. Ele pega essa estética realista e usa para contar histórias épicas, como se o realismo tivesse se transformado no novo mito.
“Uau, as crianças estão brincando e ficando sujas e sem saber o que fazer com o mundo adulto e essa é a grande aventura de suas vidas, olha quantas lições elas podem tirar disso?” É, elas podem mesmo. A gente aprende e acaba dando sentido às nossas experiências, é inevitável.
Mas esse aprendizado exige uma autonomia fantástica/surreal por parte das crianças. Por mais que surjam lições de nossas brincadeiras, não conseguimos nos organizar para ter um crescimento de espírito tão linear quanto aquele mostrado no desenho.
Crianças não conseguem organizar uma sociedade pararela à dos adultos que seja altamente funcional e empolgante como a do riacho (Eu e meus amigos tentamos tanto quando crianças, quem dera…). É por isso que Craig of the Creek não é inteiramente realista.
Ele funciona como um exercício de pensar nas lições essenciais para todo ser humano compreender em uma dada sociedade. Por isso, cria-se uma sociedade genérica que o mais novo dos seres humanos conseguiria imaginar. É um exercício de ética muito bonito.
Mas isso o torna um pouco mais comum, uma história qualquer. “Quais as histórias que todos nós podemos viver?”. Todos os personagens são genéricos, são pessoas tentando ser alguém, qualquer que seja. Você assiste, tem uma satisfação de pensar numa bela lição e pronto.
Com Clarêncio, você não para de pensar depois que assiste. O que fazer sobre os pais, a sociedade, a vida? A animação não oferece respostas. Os personagens têm mais profundidade e são muito parecidos com pessoas reais. É mais catártico. Clarêncio não oferece atalhos. Ele é sério.