Heartstopper e representatividade de casais gays
O quadrinho Heartstopper ganhou popularidade ultimamente por conta de uma adaptação da Netflix. Fiquei interessada em ler depois de ouvir falar que havia sido escrito por uma mulher, mas todos estavam falando como se fosse exatamente o tipo de história que homens gays queriam ver. Muita gente deve estar achando que a série é simplesmente super bem pensada para agradar seu público alvo, mesmo sua criadora não tendo o famoso "lugar de fala". O que me parece, no entanto, é uma falta de entendimento do real público alvo desta série: mulheres. Acontece que Heartstopper é parte de uma tradição já consolidada na internet de histórias sobre homens gays escritas por jovens mulheres para outras mulheres.
As pessoas esquecem que a internet já existe há mais de 20 anos e conseguiu alterar significativamente o imaginário popular. Neste caso, a ideia é que meninas adolescentes, muitas vezes, não sabem lidar com seus desejos sexuais e gostariam que meninos fizessem mais sentido, para que a realização de suas paixonites fosse simples e tranquila. Ao invés disso, homens são diferentes e intimidadores, além de que elas estão inseguras com seus corpos nesta fase da vida. Então, criam narrativas online nas quais elas não possuem um corpo feminino e os homens são como elas, inteligíveis. Também é muito comum que essas meninas tenham internalizado, por conta do extremismo que a internet traz, que ou são perfeitas, ou não são mulheres o bastante. Por isso, elas se veem como homens.
Esse tipo de tradição virtual é mais potente do que as pessoas têm dado crédito. Tipo, ridiculamente potente. Arrisco dizer que a tradição descrita é responsável quase completamente pela aparição da pauta homossexual nos últimos 20 anos, e esse fenômeno nunca teve a ver com a vida de homens gays de verdade. Nem nenhuma dessas "representatividades exemplares" tem a ver com as pessoas as quais dizem representar.
Nos primeiros capítulos de Heartstopper, Charlie sofreu com bullying no passado por ser gay, mas é claro que todo o preconceito não impede Nick de querer amigar com ele, mesmo sendo um super popular jogador de Rugby. Quando chama o Charlie para participar do esporte com ele, a preocupação maior do time é que ele é muito fraquinho, só depois por ser gay. E percebam o tom com o qual dizem que ele é gay: não é algo dito sussurrado, como um tabu, ou como algo "incriminador". É dito como se fosse uma falha de caráter comum de se ver, um detalhe relembrado apenas ocasionalmente que não é alarmante de cara. Isso porque "gay", aqui, está substituindo "mulher" e o estigma que estas sofrem. O corpo magro, o sexo inconveniente para homens, que deixam meninas inseguras ao lado deles. Não é sobre "fazer um romance homossexual leve e prazeroso", é sobre mulheres!
O sucesso da série da Netflix com o grande público se deve ao fato de que as pessoas adoram essa narrativa do tipo fanfic. Consomem aos montes na internet como guilty pleasure. É viciante e legalzinho, depois esquecível, como tudo o que a Netflix faz.